segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Movimentos Sociais: Unidade e Diversidade



Movimentos Sociais: Unidade e Diversidade

Nildo Viana

Resumo:
O presente artigo aborda a questão da unidade e diversidade dos movimentos sociais. O objetivo foi apresentar a diferença entre movimentos sociais em geral e movimentos sociais específicos. Para concretizar esse objetivo, lançamos mão do método dialético e suas categorias analíticas. A análise da unidade dos movimentos sociais remeteu para a reflexão sobre o seu conceito, pois este é o elemento que permite entender a essência dos mesmos. O passo seguinte foi mostrar que existe uma diversidade no interior dessa unidade e que ela se manifesta através do movimento específico de cada grupo social em sua relação com a totalidade da sociedade moderna. Esse processo analítico foi complementado pela análise crítica de algumas definições e problemas nas abordagens dos movimentos sociais em geral e específicos. A conclusão geral é a de que é necessário um conceito de movimentos sociais que consiga dar conta da unidade e diversidade desse fenômeno, tal como o que foi apresentado no artigo, e que este momento precisa ser complementado pela análise da diversidade, o que remente para o caso dos movimentos sociais específicos.
Palavras-chave: unidade, diversidade, movimentos sociais, movimentos sociais específicos, dialética.
Abstract:
This article addresses the issue of the unity and diversity of social movements. The objective was to present the difference between social movements in general and specific social movements. To achieve this goal, we have used the dialectical method and its analytical categories. The analysis of the unity of social movements referred to the reflection on its concept, because this is the element that allows to understand the essence of them. The next step was to show that there is a diversity within this unity and that it manifests itself through the specific movement of each social group in its relation to the totality of modern society. This analytical process was complemented by the critical analysis of some definitions and problems in the approaches of the social movements in general and specific. The general conclusion is that there is a need for a concept of social movements that can account for the unity and diversity of this phenomenon, such as the one presented in the article, and that this moment needs to be complemented by the analysis of diversity, which The case of specific social movements.
Key words: unity, diversity, social movements, specific social movements, dialectics.

A análise dos movimentos sociais vem se desenvolvendo há algumas décadas. Ela acompanha a própria evolução dos movimentos sociais. Porém, ainda há muitos aspectos dos movimentos sociais que não receberam maior atenção e reflexão. Um destes elementos, que é nosso alvo de análise aqui, é sobre a relação entre os movimentos sociais em geral e os movimentos sociais específicos. Os movimentos sociais em geral remetem ao problema conceitual. O conceito de movimentos sociais expressa o que há de universal (geral) em todos os casos concretos, ou seja, o conjunto dos movimentos sociais específicos. Tratar dos movimentos sociais específicos, por sua vez, remete a casos concretos, como o movimento estudantil, negro, feminino, ecologista, etc. Esse é um ponto que merece desdobramento analítico e é o nosso objetivo aqui.
Refletir sobre os movimentos sociais em geral significa abordar o conceito de movimentos sociais. O que são os movimentos sociais? Essa indagação, no plural, já aponta para a existência de diversos movimentos sociais específicos. O conceito de movimentos sociais remete ao conjunto destas expressões específicas. Por isso, é preciso que o conceito dê conta de responder ao seguinte questionamento: o que é há de comum em todos os movimentos sociais?
No entanto, não basta responder a esta questão. É preciso acrescentar uma outra questão que é: o que torna os movimentos sociais um fenômeno específico e diferenciado de outros fenômenos com os quais geralmente é confundido (como classes sociais, partidos, manifestações, protestos, etc.). Logo, um conceito de movimentos sociais só tem valor se der conta de responder a estas duas indagações: o que há de comum e o que há de específico nos movimentos sociais?
Para responder a estas indagações partiremos do método dialético, tal como desenvolvido por Marx (1983; 1988) a partir da assimilação da concepção hegeliana. O objetivo é mostrar a unidade na diversidade dos movimentos sociais. Por isso vamos abordar, inicialmente, a unidade dos movimentos sociais e, posteriormente, a sua diversidade.
A Unidade dos Movimentos Sociais
Antes de iniciar nossa discussão sobre a unidade dos movimentos sociais, ou seja, o que todos eles possuem em comum, é preciso esclarecer que algumas definições desse fenômeno são problemáticas. Os limites das definições de movimentos sociais remetem à incapacidade de mostrar a unidade ou a especificidade dos movimentos sociais. No interior dessas concepções limitadas, é possível ver a seguinte definição de movimentos sociais: “Um movimento social é um conjunto de opiniões e crenças em uma população que manifesta preferência pela mudança em alguns elementos da estrutura social e/ou na distribuição de recompensas em uma sociedade” (McCARTHY e ZALD, 2016).
Essa definição é tão ampla que abarca inúmeros fenômenos sociais e assim não saberemos o que distingue um movimento social (ou os movimentos sociais) de outros, tais como partidos, classes, manifestações, etc. Em todos estes casos existem “estruturas de preferências”, bem como opiniões e crenças, e quase todos apontam para mudança ou distribuição de benefícios dentro da sociedade. Vejamos uma outra definição:
Movimentos sociais são ações coletivas de caráter sociopolítico, construídas por atores sociais pertencentes a diferentes classes e camadas sociais. Eles politizam suas demandas e criam um campo político de força social na sociedade civil. Suas ações estruturam-se a partir de repertórios criados sobre temas e problemas em situações de conflitos, litígios e disputas. As ações desenvolvem um processo social e político-cultural que cria uma identidade coletiva ao movimento, a partir de interesses em comum. Esta identidade decorre da força do princípio da solidariedade e é construída a partir da base referencial de valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo (GOHN, 2000).
A definição acima padece de inúmeras imprecisões (qual o conceito de classe social utilizado? O que são “camadas sociais”? classes e camadas são coisas distintas? O que são ações coletivas? O que significa caráter sociopolítico? Estes e outros questionamentos poderiam ser feitos e mostram que a definição acima não possui base teórica)[1]. Além das imprecisões, encontramos várias afirmações não fundamentadas: por qual motivo se desenvolve “interesses em comum”? Independente das imprecisões e falta de fundamentação, é preciso destacar a falta de base teórica e de fundamentos para a definição apresentada. Não se trata de um conceito e sim de uma mera definição, que, ao que tudo indica, se fundamenta em idiossincrasia da pesquisadora e num ecletismo sem coerência (usa termos marxistas ou leninistas, aliados com terminologia da chamada “teoria do processo político” e, ainda, da chamada “teoria dos novos movimentos sociais”).
No entanto, o nosso propósito aqui não é criticar as definições em si e sim colocar seus limites para estabelecer sua relação com a problemática da unidade e diversidade. Essa definição, apesar de remeter a vários aspectos, acaba gerando algo que pode ser atribuído a classes sociais, movimentos de classe, partidos políticos, organizações, etc. A especificidade dos movimentos sociais está ausente.
Voltemos, então, para a necessidade de elaboração de um conceito de movimentos sociais. O que há de comum em todos os movimentos sociais? Aqui precisamos esclarecer quais são os fenômenos sociais que entendemos compor os movimentos sociais. O signo, a expressão verbal, já temos (movimentos sociais), mas precisamos explicitar que aspecto da realidade ele expressa. Os fenômenos sociais que entendemos que compõem os movimentos sociais são os movimentos sociais específicos. É o caso do movimento estudantil, movimento negro, movimento feminino, movimento ecológico, movimento pacifista, movimento de luta pela moradia, movimento sanitário, movimento de bairros, etc. Portanto, o conceito de movimentos sociais deve mostrar a unidade de todos esses movimentos sociais, bem como sua distinção em relação a inúmeros outros fenômenos sociais.
A unidade, no entanto, é sua essência. A essência, por sua vez, é universal. Para a dialética materialista, a essência é a determinação fundamental, aquilo que constitui o fenômeno e se manifesta em todos os casos concretos, a não ser quando é impedido de se manifestar por determinações externas. A semente contém, em si, uma árvore. Essa árvore vai se desenvolver naturalmente (HEGEL, 1980). Isso só não ocorre se a semente for jogada no deserto ou no fogo, ou seja, se for destruída, pois assim não realizará sua essência. Isso é comum a todas as sementes, a não ser por determinação externa (como as sementes híbridas, alteradas geneticamente em laboratório). Por conseguinte, dizer o que são os movimentos sociais é revelar sua essência, aquilo que possuem em comum e fornece sua unidade e especificidade.
Um conceito de movimentos sociais que se aproxima dessa exigência metodológica é a de que eles são “movimentos de grupos sociais” (JENSEN, 2016). Todos os fenômenos acima citados apontam para isso, mesmo no caso de grupos sociais que são constituídos simultaneamente com o próprio movimento, como é o caso do movimento ecológico ou do movimento pacifista. No entanto, esta definição ainda é relativamente imprecisa e por isso os movimentos sociais podem ser melhor compreendidos da seguinte forma:
Os movimentos sociais são mobilizações (ações coletivas ou compartilhadas) de determinados grupos sociais derivadas de certas situações sociais que geram insatisfação social, senso de pertencimento e determinados objetivos. Os movimentos sociais podem gerar ramificações, tais como doutrinas, ideologias, teorias, representações, organizações informais ou formais, tendências, etc. Essas ramificações não se confundem como eles, são partes e não o todo e que podem deixar de ser, como uma organização que se autonomiza e passa a ter interesses próprios ou uma concepção de um autor que ganha um desenvolvimento que rompe com o seu vínculo com o movimento social (VIANA, 2016a, p. 43).
Acima temos não apenas uma definição (mera classificação ou delimitação) e sim um conceito, que, por sua vez, remete a vários outros conceitos, tais como grupos sociais, mobilização, situação social, senso de pertencimento, mobilização, objetivos[2]. Esses outros conceitos não são meros apêndices e sim aspectos da realidade dos movimentos sociais que são seus elementos constitutivos e que os explicam. Os grupos sociais não geram automaticamente movimentos sociais (JENSEN, 2016; VIANA, 2016a), para isso é preciso que haja uma determinada situação social específica geradora insatisfação social e, ainda, que a partir de ambos, se crie senso de pertencimento (ao grupo), objetivos e mobilização.
A essência dos movimentos sociais reside nesses elementos constitutivos e por isso é universal, está presente em todos os movimentos sociais, formando a sua unidade. Todos os movimentos sociais possuem estes elementos. Em caso contrário, não são movimentos sociais ou então são ramificacões ou embriões dos mesmos. Um movimento social que se torna uma grande organização burocrática se transformou em outra coisa. Nesse caso, não é mais um movimento social. Uma organização específica, como a Frente Negra Brasileira, Movimento Negro Unificado, Movimento Negro Socialista, entre outros exemplos, são organizações do Movimento Negro e não um movimento cada um. O grupo social composto pelos negros geram um movimento social que, por sua vez, gera diversas organizações, concepções, tendências, etc. Nesse caso, são ramificações do movimento negro.
O movimento feminino tem como base o grupo social das mulheres, assim como o movimento ecológico o dos ecologistas, o estudantil o dos estudantes, etc. Isso já é uma diferença, por exemplo, com os movimentos de classes sociais, pois sua base são grupos e não classes. Outro elemento que distingue os movimentos sociais de outros fenomenos sociais reside nos seus objetivos. Os objetivos dos movimentos sociais são os do grupo social de sua base, os interesses grupais. Desta forma, enquanto o objetivo ligado organicamente ao grupo social existir em uma organização, tendência, concepção, etc., então é parte dele, sendo uma ramificação do mesmo. Geralmente, as organizações e demais ramificações possuem um duplo objetivo (VIANA, 2016b), mas quando o objetivo do grupo social se torna meramente discursivo ou é abandonado, aí já não se trata mais de ramificação de um movimento social. Esse desligamento do movimento social ocorre frequentemente, com o processo de mercantilização e burocratizacão crescente de setores dos movimentos sociais. No movimento estudantil é comum, por exemplo, que existam ao lado dos objetivos especificamente estudantis, algumas posições diante do governo, do desenvolvimento nacional, da sociedade como um todo, gerando objetivos gerais, como apoio ou recusa de governos, propostas de políticas nacionais, projetos de revolução social, etc. Se uma organização, tendência, concepção do movimento estudantil abandona os objetivos especificamente estudantis, então deixa de ser parte dele, promovendo o desligamento do movimento estudantil.
Desta forma, todas as organizações, tendências, concepções, etc., que não expressam os objetivos específicos do grupo social de base de um movimento social não é parte dele. Isso também vale para as que fazem isso apenas discursivamente, como meio de obter algo em troca (partidos querendo votos dos grupos sociais, por exemplo). Se o objetivo é um elemento definidor dos movimentos sociais, não é qualquer objetivo. Trata-se do objetivo do grupo social de base dos mesmos. Como os movimentos sociais não estão isolados na sociedade, mesmo as ramificações especifistas (TARDIEU, 2014), de uma forma ou de outra apontam para objetivos mais gerais relativos à sociedade (seja em relação ao aparato estatal, legislação, sociedade civil, cultura, etc.). É o objetivo grupal, expressão do interesse grupal.
Em síntese, a unidade dos movimentos sociais, expressa no seu conceito, aponta para os seus elementos constitutivos e isso se manifesta em todos eles. O conceito de movimentos sociais explicita não apenas a unidade dos movimentos sociais, mas também sua especificidade e sua forma de se relacionar com a totalidade da sociedade. Os movimentos sociais existem a partir dos seus objetivos e estes expressam os seus interesses (VIANA, 2016b). No entanto, é possível perguntar: quais interesses? Isso remete a qual movimento social se trata, pois cada um tem um grupo social de base distinto com interesses distintos. Num sentido mais essencial, o interesse grupal é a transformação situacional do grupo (VIANA, 2016b), rompendo com aquilo que gera sua insatisfação. Os objetivos de um movimento social são determinados pelo seu interesse grupal e este pode conter tanto interesses imediatos quanto interesses fundamentais, entre outros processos complexos que não poderemos desenvolver aqui[3]. A reflexão realizada até aqui serve para apresentarmos a unidade e especificidade dos movimentos sociais e esses elementos são explicitados através do seu conceito. No entanto, os movimentos sociais específicos não foram explicados e por isso esse será o nosso próximo passo.
A Diversidade de Movimentos Sociais
Até aqui tratamos da unidade dos movimentos sociais. Falta abordar sua diversidade e esta remete às relações sociais reais (os movimentos sociais são fenômenos reais). De acordo com a teoria da realidade de Marx, o real é o concreto. O concreto, por sua vez, é compreendido como “a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso” (MARX, 1983). O real é a unidade do diverso, o que significa que traz em si a unidade da diversidade. O momento da diversidade expressa diversas singularidades que são formas específicas de manifestar uma determinada universalidade. A essência é o universal e a existência mostra as manifestações singulares, as especificidades. A compreensão da essência em seu processo concreto de existência é uma nova totalidade, mais ampla, formando uma unidade na diversidade. Em termos hegelianos, que Marx utilizou em várias passagens, a existência é o concreto com suas múltiplas determinações e a essência é a sua determinação fundamental, que é constituinte do fenômeno. No concreto se reúne essência e existência, mas ele é sempre uma categoria relativa, pois em relação a uma outra realidade, pode ser essência[4].
Essas reflexões sobre algumas das categorias do pensamento dialético ajudam a entender a questão da unidade e diversidade dos movimentos sociais. A unidade dos movimentos sociais é uma totalidade inserida numa outra totalidade mais ampla que é a sociedade. Essa unidade revela, também, a essência do fenômeno chamado “movimentos sociais”, expressa através do seu conceito. A diversidade, nosso tema no presente item, revela singularidades que são manifestações de uma essência (movimento social) sob forma específica, singular. A sua especificidade, por sua vez, reside na sua relação singular com a totalidade. No caso, a relação singular de cada movimento social com a sociedade moderna.
Isso é mais facilmente compreensível se recordarmos que os movimentos sociais só surgem na sociedade moderna. Os movimentos sociais são produtos da sociedade capitalista. É a sociedade moderna que cria os grupos sociais ou então a situação que gera insatisfação[5] e todos os elementos derivados que constituem um movimento social. A sociedade moderna, além de criar diversas classes sociais, também gera diversos grupos sociais, movimentos sociais, organizações, etc. As classes sociais, por exemplo, são iguais no seu conceito, em sua essência e universalidade, mas são distintas em suas manifestações singulares e isso não é um produto delas e sim da sociedade e da divisão social do trabalho que ela cria sob determinada forma, a partir das relações de produção dominantes. Burguesia e proletariado são classes sociais da sociedade capitalista, mas são, ao mesmo tempo, classes antagônicas. Aqui não existe apenas diversidade, mas também antagonismo. Isso é próprio da especificidade das classes sociais que são relacionais, ao contrário dos grupos sociais, que são diferentes uns dos outros mas não são constituídos necessariamente na relação de uns com os outros.
A sociedade moderna gera um fenômeno específico que denominamos movimentos sociais. Cada movimento social possui uma especificidade, que é sua forma singular de existência e de sua relação com o conjunto da sociedade. No entanto, isso nem sempre é perceptível quando não se possui uma base teórico-metodológica de análise. Esse é um dos motivos pelos quais os movimentos sociais são analisados separadamente ou em conjunto sob forma abstratificada[6]. Essa é uma das fontes geradoras de diversas definições problemáticas de movimentos sociais. Uma coisa é analisar o movimento social X ou Y, outra coisa é analisar os movimentos sociais em geral. Infelizmente, quando se trata de analisar os movimentos sociais em sua unidade, as abstrações metafísicas, as definições empíricas ou idiossincráticas acabam predominando. O que apresentamos no item anterior foi o conceito de movimentos sociais, revelando sua unidade. Agora é o momento de tratar da especificidade dos movimentos sociais específicos.
Existem diversos movimentos sociais. Uma lista que tentasse ser exaustiva seria longa e provavelmente poderia deixar algum movimento de fora. Os movimentos sociais mais abordados e reconhecidos socialmente são o negro, o estudantil, o feminino e o ecológico. Tomaremos estes casos como base para nossa análise a seguir. Esses quatro movimentos sociais possuem em comum, o que revela sua unidade, os elementos constitutivos que estão englobados no conceito de movimentos sociais. Todos eles possuem um grupo social de base, pois os movimentos sociais são compostos por indivíduos oriundos desses grupos que entram em “fusão”, ou seja, nem todos os indivíduos do referido grupo são integrantes do movimento. O grupo social dos estudantes, o grupo social das mulheres, o grupo social dos negros, o grupo social dos ecologistas[7], são a base social destes movimentos e aquilo que lhe proporciona seus objetivos, que são a manifestação dos seus interesses, e que geram senso de pertencimento e mobilização. Isso só ocorre por causa de certas situações sociais específicas que atingem tais grupos e da insatisfação social derivada disso. Isso é comum a todos eles.
E o que os diferencia? Se existe uma diversidade de movimentos sociais, então o que os torna diferentes? Sem dúvida, a diferença nasce no grupo social de base de cada movimento social. As diferenças entre os grupos sociais de base geram, por sua vez, diferenças na situação, insatisfação, senso de pertencimento, objetivos, mobilização. As mulheres formam um grupo social delimitado por sua corporeidade e por tudo que é derivado disso, além da situação social específica derivada dos processos sociais e históricos em relação com tal corporeidade. Os negros formam um grupo social delimitado também pela corporeidade, apesar das diferenças, pois nesse caso a diferenciação passa por gradações e isso gera uma maior dificuldade de delimitação em alguns casos. Os estudantes formam um grupo social delimitado pela condição estudantil, o que lhe coloca sua existência como dependente da instituição escolar. Os ecologistas, por sua vez, formam um grupo delimitado por aqueles que se unificam em torno de uma determinada concepção a respeito do problema ambiental[8].
Desta forma, a diferença de grupo social significa diferença de situação e, por conseguinte, de insatisfação. No entanto, no caso dos grupos sociais cuja distinção reside na corporeidade, a sua situação social específica é distinta em sociedades diferentes. A escravidão negra cria uma situação diferente para os negros no novo mundo, bem como sua inserção na sociedade capitalista pós-abolição. As relações raciais fundadas na exploração (escravismo colonial) ou no racismo (sociedade capitalista) são distintas e diferentes das que existem nas sociedades em que a população negra é quase que a totalidade (e em certos momentos históricos se constituiu como totalidade). Só existe motivo para existir um movimento negro quando existem relações raciais e essas ocorrem sob forma que gera insatisfação social, sendo uma situação social específica. Grupos sociais distintos possuem situações sociais específicas, ou seja, distintas. Isso, por sua vez, gera distintos objetivos, senso de pertencimento e mobilização. O grupo social das mulheres não tem como objetivo combater a destruição ambiental, nem o racismo, nem a melhoria da condição estudantil. Isso, no entanto, não impede que algumas mulheres coloquem isso como objetivo, especialmente aquelas que se inserem nesses outros grupos (mulheres ecologistas, mulheres negras, mulheres estudantes). No entanto, esse não é um objetivo específico do grupo social das mulheres.
A situação dos estudantes é distinta da situação dos ecologistas, negros e mulheres, embora alguns sejam pertencentes a estes outros grupos ou se preocupem com sua situação e reivindicações. O mesmo vale para os ecologistas e negros, pois existem ecologistas estudantes, negros e mulheres, bem como pessoas negras que são ecologistas, estudantes e mulheres. O elemento gerador do movimento não é qualquer insatisfação e sim aquela que é própria do grupo e o que gera a sua mobilização.
O que interessa explicitar aqui é que um movimento social específico tem sua especificidade oriunda de qual é o grupo social de base, qual sua situação e insatisfação, e, por conseguinte, quais são seus objetivos, senso de pertencimento e formas de mobilização. Mas isso só pode ser compreendido através da relação específica de cada grupo social com a totalidade da sociedade.
A relação específica entre o grupo social e a sociedade, marcada por determinada situação que gera insatisfação[9], gera um movimento social específico, que, por sua vez, possui objetivos específicos e outras especificidades derivadas. Para compreender um movimento social específico é fundamental entender essa relação específica com o conjunto da sociedade. O movimento ecológico, por exemplo, só surge devido aos problemas ambientais gerados pela sociedade capitalista. Sem tais problemas, não existiria o grupo social dos ecologistas e nem o movimento ecológico. Na sociedade feudal também havia problemas ambientais, mas não havia uma sociedade civil organizada, meios tecnológicos de comunicação, etc., bem como o uso da força e da repressão eram constantes e essas determinações mostram a impossibilidade de existência de um movimento ecológico nessa sociedade. Essas condições de possibilidade, por sua vez, não geram imediata e automaticamente um movimento social. Isso só ocorre após a constituição de uma consciência a respeito da questão ambiental que deixa de ser individual e se torna coletiva, o que ocorre através de um senso de pertencimento grupal das pessoas preocupadas com o meio ambiente. A situação social que gera a insatisfação e grupo social não é suficiente para fazer emergir o movimento social, pois este depende de uma fusão que faça com que os indivíduos atomizados (parte deles) estabeleçam senso de pertencimento, objetivos, mobilização.
O caso do movimento ecológico é bem distinto do movimento negro, feminino, estudantil. A razão de existência do movimento ecológico é distinto da do movimento negro, bem como dos demais. Esses grupos sociais podem até criar um entrelaçamento reivindicativo, mas possuem objetivos específicos, dinâmicas, etc., bem distintos. A sua unificação só pode ocorrer quando se obtém consciência de que a raiz de sua insatisfação se encontra na sociedade como totalidade e nas relações sociais específicas que criam com cada grupo social, o que remete ao objetivo geral além dos objetivos específicos[10].
Em síntese, os movimentos sociais específicos possuem em comum os elementos constitutivos de um movimento social e como diferença a especificidade destes elementos que são derivados de sua relação específica com a totalidade da sociedade capitalista. Por isso é necessário o desenvolvimento de pesquisas sobre cada movimento social específico.
Isso abre um amplo programa de pesquisa, pois se os movimentos sociais em geral encontram problemas conceituais, isso é ainda mais grave no caso dos movimentos sociais específicos. A maioria das pesquisas sobre alguns movimentos sociais específicos nem sequer aponta uma definição, muito menos um conceito. Isso, por sua vez, é dificultado pela falta de um conceito de movimentos sociais e os mesmos problemas que geram tal falta nesse caso atinge também as pesquisas sobre movimentos sociais específicos.
Assim, somente com o desenvolvimento de conceitos a respeito dos movimentos sociais específicos é que poderemos avançar no sentido de não só ter uma teoria dos movimentos sociais em geral, mas também dos movimentos sociais específicos. E isso precisa ser realizado tendo em vista que os movimentos sociais específicos possuem uma grande complexidade. Além do conceito do movimento social específico, é necessário estabelecer quais são suas relações com o conjunto da sociedade (Estado, cultura, sociedade civil, partidos, etc.) e analisar suas diversas ramificações (organizações, tendências, ideologias, concepções, etc.).
Isso quer dizer que um movimento social específico não é homogêneo. Ele é marcado por divisões internas. O movimento negro, por exemplo, não é um todo homogêneo e uma rápida olhada em sua história (nos Estados Unidos ou no Brasil) ou em suas expressões contemporâneas, é suficiente para ver a diversidade de tendências, organizações, concepções, etc. O mesmo vale e é perceptível no caso do movimento das mulheres, ecologista e estudantil, para nos limitarmos aos quatro casos que usamos como ilustração em nossa análise. Assim, um movimento social específico é, ele mesmo, uma unidade na diversidade. O conceito desse movimento expressa sua essência, sua unidade, mas sua manifestação concreta, histórica, espacial, remete para uma diversidade no seu interior.
Nesse sentido, num plano mais abstrato e geral, essa é a diversidade na unidade dos movimentos sociais. A compreensão da necessidade de aprofundamento da teoria geral dos movimentos sociais é fundamental, bem como de teorias dos movimentos sociais específicos, pois um processo enriquece o outro. Um desenvolvimento da reflexão aqui estabelecida remete para a necessidade de análises de determinados movimentos sociais específicos, o que não é nosso objetivo no presente momento.
Considerações finais
O nosso trajeto foi o de apresentar uma análise da unidade e diversidade dos movimentos sociais. O objetivo foi estabelecer uma distinção necessária e poucas vezes realizada entre movimentos sociais em geral e movimentos sociais específicos[11]. A perspectiva aqui adotada foi embasada no método dialético, pois este nos fornece ferramentas intelectuais que permitem resolver esse problema, ao tratar da questão da unidade da diversidade e de suas categorias de análise da realidade.
A partir do método dialético, buscamos resgatar a unidade dos movimentos sociais em seu conceito, após análise crítica de certas definições dos mesmos, e depois estabelecer a questão de sua diversidade. A diversidade de movimentos sociais é um elemento fundamental. O que ocorre mais frequentemente é o tratamento abstratificado dos movimentos sociais em geral, por alguns, e a abordagem de movimentos sociais específicos isoladamente, por outros. O percurso aqui realizado se justifica justamente pela tentativa de superação dessas duas formas de trabalhar os movimentos sociais.
Por fim, a análise apontou para a necessidade de um conceito de movimentos sociais que dê conta da unidade e da diversidade, bem como de análises dos movimentos sociais específicos. Esse é apenas um ponto de partida que merece aprofundamentos e desdobramentos. Essa é a tarefa posta para os pesquisadores dos movimentos sociais.

Referências


FROMM, Erich. Psicanálise da Sociedade Contemporânea. 6ª edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

GOHN, Maria da Glória. 500 anos de Lutas Sociais no Brasil: Movimentos Sociais, ONGs e Terceiro Setor. Revista Mediações, 05(01), 2000.

HEGEL, Georg F. Introdução à História da Filosofia. Coimbra: Armênio Amado, 1980.

JENSEN, Karl. Que Fazer? Goiânia: Edições Redelp, 2016.

MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 1983.

MARX, Karl. O Capital. 3ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

McCARTHY, John e ZALD, Mayer. Mobilização de Recursos e Movimentos Sociais: Uma Teoria Parcial. Movimentos Sociais, 01(02), 2016.

TARDIEU, Serge. Crítica ao Especifismo. Marxismo e Autogestão, 01(02), 2014.

VIANA, Nildo. A Consciência da História - Ensaios Sobre o Materialismo Histórico-Dialético. 2ª edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.

VIANA, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. 3ª edição, Goiânia: Alternativa, 2007.

VIANA, Nildo. A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx. Florianópolis: Bookess, 2012.

VIANA, Nildo. Os Movimentos Sociais. Curitiba: Prismas, 2016a.

VIANA, Nildo. Os Objetivos dos Movimentos Sociais. Movimentos Sociais, 01(01), 2016b.







[1] A distinção entre “classes sociais” e “camadas sociais” tem sua origem na tradição leninista e é distinta da concepção de Marx (VIANA, 2012).
[2] Na obra citada esses conceitos são apresentados, o que não poderemos reproduzir aqui por questão de espaço.
[3] Uma análise dos objetivos, interesses e reivindicações dos movimentos sociais é fundamental e pode ser visto em Viana (2016b).
[4] É preciso ter em vista a distinção entre categorias e conceitos. As categorias são ferramentas intelectuais que nos ajudam a compreender a realidade, sendo elemento constituinte do método, e os conceitos são expressões da realidade, sendo, portanto, constituintes da teoria (VIANA, 2007a).
[5] Alguns grupos sociais são constituídos pelo capitalismo, como os estudantes, ecologistas, pacifistas, etc., outros existem antes dele, como o grupo social das mulheres, dos negros, etc. Porém, como já foi dito anteriormente, não basta a existência de um grupo social para que ele constitua um movimento social, pois outras determinações são necessárias, sendo que algumas delas só se manifestam na sociedade capitalista. A existência dos movimentos sociais pressupõe uma sociedade civil organizada, meios de comunicação e outros elementos que só se desenvolvem no capitalismo (VIANA, 2016a).
[6] Aqui usamos o termo “abstratificação” num sentido semelhante ao que Erich Fromm (FROMM, 1976) usou, mas com um caráter mais amplo, significando as formas de abstração metafísica, distinta da abstração dialética realizada por Marx em sua análise da realidade (VIANA, 2007b).
[7] Aqui talvez fosse importante acrescentar os movimentos populares ou movimentos sociais urbanos, mas esses termos se apresentam no plural, pois não se trata de apenas um movimento e sim de um conjunto deles, pois existem em torno de algumas questões comuns. Devido a essa característica específica desses casos e também por nenhum movimento específico destes dois conjuntos ter o mesmo destaque que os citados, então os deixaremos de lado.
[8] Os grupos sociais de base dos movimentos sociais podem ser corporais, situacionais, culturais (VIANA, 2016a). No caso acima, trata-se de dois grupos corporais, um situacional e outro cultural.
[9] Se a insatisfação é justa ou injusta, falsa ou verdadeira, isso não vem ao caso nesse momento. Os movimentos sociais conservadores, por exemplo, possuem uma insatisfação que muitos considerariam injustas, mas nem por isso deixa de ser insatisfação.
[10] Daí a crítica ao “especifismo” (TARDIEU, 2014).
[11] Karl Jensen foi um dos poucos que chamou atenção e desenvolveu alguma reflexão sobre essa relação, ao distinguir a questão da generalidade e especificidade dos movimentos sociais (JENSEN, 2016).
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Movimentos Sociais: Unidade e Diversidade. Revista Café com Sociologia. Vol. 05, Num. 03, 2016.
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